Interpretação constitucional é um dos meus temas preferidos e nas últimas semanas noticiou-se um exemplo notável de mudança da norma sem alteração do texto. Mais especificamente, trata-se da interpretação preconizada por Michel Temer, presidente da Câmara dos Deputados e conhecido constitucionalista e constituinte, do art. 62, § 6.º da CF/88, com a redação dada pela EC 32/2001.
Sabe-se que norma não é o mesmo que texto legal; além disso, é comum dizer-se que o característico das ciências do espírito – dentre as quais o direito – é a aptidão para a releitura e para a formação de novas convicções sobre os mesmos textos.
No caso, jamais houve qualquer dúvida a respeito do art. 62, § 6.º da CF/88, segundo o qual “se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando”. Esse é o chamado trancamento da pauta: não apreciada em até 45 dias a partir da sua publicação, a medida provisória entra em regime de urgência, e isso significa que até que se ultime a sua votação, ficam sobrestadas todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.
Tendo em vista a edição contumaz de medidas provisórias, o trancamento de pauta é muito comum, e há uma grande queixa dos congressistas em relação a esse obstáculo ao regular andamento dos trabalhos legislativos, causada pelo exercício – para alguns ilegítimo ou indevido ou exagerado – do poder ou faculdade do Presidente da República de editar medidas provisórias.
Noticiou-se, então, que Michel Temer defendeu uma nova interpretação do art. 62, § 6.º da CF/88: a oração “todas as demais deliberações legislativas” deveria ser entendida como deliberações a respeito de proposições legislativas aptas a serem veiculadas por medida provisória. Em outras palavras, ficariam sobrestadas as deliberações sobre projetos de lei ordinária; por outro lado, não ficariam sobrestadas as deliberações sobre emendas constitucionais, leis complementares, resoluções e tudo quanto não pudesse ser objeto de medidas provisórias (inclusive as matérias previstas no art. 62, § 1.º da CF/88), e nem fica trancada a pauta das deliberações extraordinárias (art. 57, § 6.º da CF/88 – apesar do art. 57, § 8.º da CF/88).
Não demorou e alguns congressistas ingressaram com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal para impugnar essa interpretação dada por Michel Temer. O processo ficou sob a relatoria do Min. Celso de Mello e o site do STF divulgou o inteiro teor da decisão liminar.
A impetração de mandado de segurança por parlamentares para impugnação de ato praticado em sede de processo legislativo é admitida por conhecida jurisprudência do STF, segundo a qual seria direito público subjetivo do parlamentar a participação em processo legislativo que siga as normas constitucionais, ou dito de outro modo, direito a não participar de processo legislativo que viole normas constitucionais. Assim, os parlamentares têm legitimidade ativa para a impetração do mandado de segurança nessas hipóteses.
Superada essa questão, surge outra, preliminar ainda, que diz respeito a saber se a controvérsia é meramente interna corporis ou não, sabendo-se que o STF rejeita a intromissão em discussões internas da casa legislativa, como atos regimentais. O Min. Celso de Mello enfatizou que a questão seria uma verdadeira controvérsia (ou litígio, como disse o Min.) constitucional – afinal, trata-se da interpretação de um dispositivo da Constituição – ficando, de um lado o Presidente da Câmara dos Deputados, e de outro, um grupo de parlamentares. Em apertada síntese, em sede de jurisdição constitucional – e no âmbito de um Estado Democrático de Direito - não haveria que se falar em intromissão indevida do Judiciário na tarefa constitucionalmente atribuída ao Legislativo, pois é próprio da jurisdição constitucional a “contenção de eventuais excessos, abusos ou omissões alegadamente transgressoras do texto da Constituição da República, não importando a condição institucional que ostente o órgão estatal – por mais elevada que seja sua posição na estrutura institucional do Estado – de que emanem tais condutas”.
Então, os parlamentares têm legitimidade para impetrar mandado de segurança com a finalidade de impugnar interpretação conferida pelo Presidente da Câmara dos Deputados a um texto da Constituição; além disso, em sendo identificada um litígio constitucional, o STF tem competência para conhecer e julgar a causa.
No mérito, o Min. Celso de Mello prestigiou a orientação de Michel Temer, que seria consentânea com a divisão constitucional de funções (ou poderes), tendo em vista a tendência dos Presidentes da República de editarem medidas provisórias de forma desmedida (“a crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos Presidentes da República, tem causado profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo”; “o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culminou por introduzir, no processo institucional brasileiro, verdadeiro cesarismo governamental em matéria legislativa, provocando graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes”).
A cobertura da imprensa geralmente fica centrada nos desvios praticados pelas casas legislativas – recentemente se fala nos excessivos e injustificados gastos do Senado Federal – e na sua atividade fiscalizatória no âmbito das CPIs. Some-se a isso, no meu caso e provavelmente no caso de muitos, à deficiência no acompanhamento dos trabalhos legislativo. Então não consigo aferir o quanto que o trancamento de pauta por uma medida provisória prejudica o andamento dos trabalhos legislativos, embora admita que teoricamente é fácil de ver uma certa perturbação na separação das funções estatais, e é certo que há muitos doutrinadores apontando e criticando o exercício exagerado do poder de editar medidas provisórias e a consequente perda de autoridade da casa legislativa na programação e conclusão dos trabalhos legislativos.
Se existe risco de “exegeses que estabeleçam a preponderância institucional de um dos Poderes do Estado sobre os demais, notadamente se, de tal interpretação, puder resultar o comprometimento (ou, até mesmo, a esterilização) do normal exercício, pelos órgãos da soberania nacional, das funções típicas que lhes foram outorgadas”, então é bom e é imperioso concluir que “a Lei Fundamental há de ser interpretada de modo compatível com o postulado da separação de poderes”.
Diante disso, “ao menos em juízo de sumária cognição”, o Min. Celso de Mello teve por descaracterizada “a plausibilidade jurídica da pretensão mandamental” dos parlamentares que se insurgiram contra a interpretação de Michel Temer.
Conforme consta do relatório da decisão do Min. Celso de Mello, segundo as palavras do próprio Michel Temer, a famigerada interpretação consiste numa interpretação sistêmica do seguinte tipo: num Estado Democrático de Direito, no qual os poderes estatais são de igual equivalência, e as funções estatais são distribuídas constitucionalmente, a tarefa de legislar incumbe precipuamente ao Poder Legislativo e a edição de medidas provisórias pelo Presidente da República se caracteriza como uma exceção, e como tal deve ser tomada – a consequência disso é que a exceção deve ser interpretada restritivamente. Partindo, então, da vedação da utilização de medidas provisórias para tratar de matérias próprias de emenda constitucional (art. 60 da CF/88), de lei complementar (art. 62, § 1.º, III da CF/88), de decreto legislativo (art. 49 da CF/88), de resolução sobre o Regimento Interno da Câmara ou Senado (art. 51 e art. 52 da CF/88), e das matérias vedadas expressamente pelo art. 62, § 1.º da CF/88, concluiu-se que o regime de urgência ao qual se submete a medida provisória não apreciada em até 45 dias só causa o sobrestamento das deliberações legislativas que, em relação à forma ou à matéria, poderiam ser veiculadas em medida provisória. Em outras palavras, as deliberações legislativas sobre emendas constitucionais, leis complementares, resoluções, decretos legislativos e projetos de leis sobre matérias referidas no art. 62, § 1.º da CF/88 não têm sua tramitação sobrestada por medida provisória em regime de urgência.
Isso só reforça a minha convicção de que, apesar de ser importante saber o texto da lei, é mais importante conhecer o que se entende do texto da lei (a norma), pois nesse caso se viu que “todas as demais deliberações legislativas” não quer significar, efetivamente, “todas as demais deliberações legislativas”, pois “algumas” não ficam sobrestadas pelo regime de urgência da medida provisória.
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