No decorrer do 3.º ano do 2.º grau, em 1995, os professores do meu colégio resolveram adotar o famigerado “espelho de classe”, a fim de coibir as conversas paralelas em sala de aula; assim, seriam dissolvidas as “panelinhas”, reunindo pessoas em mesas próximas que aparentemente não teriam afinidade, e consequentemente o silêncio e a concentração se imporiam durante as aulas. Escolheram, então, para sentar na minha frente a Dige, que notoriamente tinha conhecimentos musicais a respeito das grandes bandas de hard rock dos anos 1980, sendo certo que ela era, além disso, irmã de um cara que foi baterista da (que veio a ser) mais conhecida banda de heavy metal do Estado. Não demorou para que começássemos a compartilhar o headphone do discman dela, e numa das aulas de religião, ela pôs para rodar o disco de uma banda que nunca tinha ouvido falar: “Images and Words” do Dream Theater. Lembro perfeitamente de como fiquei bem impressionado com o timbre marcante da bateria e os riffs iniciais da primeira faixa “Pull Me Under”: há uma longa introdução com um dedilhado com a guitarra limpa, uns solos curtos de teclado e a bateria fabricando o clima com tons, bumbo e caixa, culminando num grande riff de heavy metal com umas quebradas bem interessantes (e inéditas para mim até então). Fiz backup numa C-60 (o mesmo fiz, em seguida, com o “Awake”, alugado na TV3), mas só ouvi o disco com atenção tempos depois, no verão de 1996, e fui cativado pelos refrões de “Pull Me Under” e de “Take the Time” (notável o poder de um bom refrão...). Tão logo cheguei da praia, me dirigi à agora extinta Mad House e comprei dois CDs excelentes: o “Images and Words” (à época só importado) e o disco solo de Ace Frehley de 1978 (à época e ainda hoje só importado). E a cada audição me tornei fã do disco e fã do Dream Theater. Além dessas, ouvir “Images and Words” teve outra conseqüência particular: preparar o ouvido para bandas de rock progressivo (notadamente, Yes), das quais virei fã na sequência.
De fato, naqueles anos fatídicos de início da predominância do grunge e do ostracismo do hard rock farofa e de todos os bons instrumentistas de som pesado em geral (início da década de 1990), o Dream Theater havia sido recém contratado por uma grande gravadora e lançara em 1992 um disco que pode ser considerado inovador. Afinal, tinha elementos de heavy metal, mas ao mesmo tempo trazia outro tipo de som que remetia ao rock progressivo, notadamente pelas longas passagens instrumentais, mudanças de andamento (calmo, pesado, rápido, lento), andamentos complexos (todo o tipo de contagem de tempos), tudo isso proporcionado pela técnica sem-reparos-a-serem-feitos exibida pelos seus cinco integrantes (vocal, guitarra, baixo, teclado, bateria). Particularmente, então, o maior destaque era o ineditismo dessa combinação: nunca tinha ouvido riffs bons de metal em meio a passagens mais melódicas típicas de outros estilos musicais. Havia músicas compridas, mas não enfadonhas. O som do Dream Theater era empolgante, e à época ninguém tocava esse som com tanto êxito: pesado, melódico e técnico. Ao mesmo tempo, apesar das influências que eventualmente se podiam identificar, nada que os caras tocavam poderia ser imediatamente referido como “ah, já ouvi isso antes no disco ‘X’ da banda ‘Y’” (em tempo: definitivamente, o mesmo não se pode dizer da banda atualmente). Geralmente se tenta rotular música desse tipo, e uma das aproximações mais sugestivas talvez seja a do próprio guitarrista John Petrucci, segundo o qual o som do Dream Theater seria uma combinação de Metallica com Yes, sem esquecer que uma das maiores influências é o Rush.
Essa característica marcante da banda já fica bem evidenciada na primeira faixa de “Images and Words”: dedilhado, riff metal, versos com acordes incomuns, pós-verso metal, segundo verso e pré-chorus virtuoso, refrão com Power chords, outro riff metal, verso virtuoso, pós-verso metal, pré-chorus virtuoso, refrão com Power chords, dedilhado inicial alterado, solo de guitarra na manha (com bends e uma pequena fritada de notas ao final), refrão com Power chords, e final com outro riff metal com parada abrupta. Isso em 8 minutos. Talvez não seja por acaso que esse é o único single da banda (fato que deu à única coletânea da banda o seu nome: “Greatest Hit and Other Pretty Cool Songs”). Trata-se, de fato, de uma música excepcional, verdadeiro “Smoke on the Water” ou “Paranoid” da banda (mal comparando). E é uma das minhas favoritas dos caras, que nunca canso de ouvir.
A segunda faixa é uma surpreendente balada, na verdade praticamente uma power ballad típica dos anos 1980. Como geralmente acontece(cia) em se tratando de Dream Theater, parece uma faixa simples de tocar: uns acordes, uns solos com notas bem colocadas, estrutura verso-refrão-pontes e interlúdios.... entretanto, os acordes são sofisticados (pelo menos para a maioria dos roqueiros... para alguém ligado ao progressivo deve ser barbada), bem como os solos, e há diversas partes diferentes. Aqui James LaBrie canta no seu registro alto, como é típico nesse gênero de música. Já aqui a banda demonstra capacidade para criar hits radiofônicos, que geralmente e por ironia são ignorados pelas rádios. Além disso, como boa banda de progressivo, os caras mostram que sabem compor também músicas curtas - mas intensas -, e não apenas longas faixas.
“Take the Time”, aliás, é a terceira do disco e tem um refrão tão cativante quanto o de “Pull Me Under” (talvez mais, até), e não por acaso se trata da música mais empolgante do disco. A banda faz uma introdução instrumental, executa o riff principal (com acordes bem dinâmicos) que serve de refrão, e dá uma parada para entrar os versos, acompanhados por umas quebradas na bateria e uma guitarra tipo suingada. São mais de 8min de música, que inclui até um encerramento falso (quando pensa que acabou, a música volta para um desfecho triunfal até o “fade out” com direito a solo virtuoso de guitarra). Aparentemente, a letra teve contribuições de todos os integrantes e retrata o período no qual a banda ficou sem vocalista, inobstante continuasse a compor freneticamente os seus primeiros clássicos. Só com “Pull Me Under” e “Take the Time” o disco já valeria ouro, ocupando aproximadamente 1/3 do tempo total das faixas.
Não se pode desconhecer que nessa fase da banda o tecladista Kevin Moore exercia papel central, tanto nas letras quanto nos arranjos das músicas. Afinal, o cara escreveu as boas letras de “Pull Me Under” e de “Surrounded” (conquanto não tenha o costume de conhecer as letras de todas as músicas, entendo que essas duas são muito boas), além de ter executado a maior parte dos solos em diversas faixas (ocupando papel tradicionalmente reservado para o guitarrista). “Surrounded” parece ser outra balada, mas lá pela metade ganha uma dinâmica muito legal. Começa com acordes ao piano, que acompanham os versos; Petrucci entra com solos melódicos (não parecem solos, e sim partes integrantes da música, essa é a beleza da banda na época), e então entram os demais instrumentos com partes bem trabalhadas (especialmente, como de costume, a parte de Mike Portnoy). Depois de “let the light surround you” a música fica mais rápida (i.é, empolgante) e Petrucci toca um tema que parece muito difícil de executar, não fosse o forte delay stereo empregado, dando um efeito sensacional. LaBrie canta alto como nunca nessas partes mais vibrantes. A calmaria volta no encerramento dessa faixa que durante tempos foi das minhas favoritas.
Assim como fora com “Another Day”, John Petrucci compôs as letras de “Metropolis Pt. 1: The Miracle and the Sleeper” e de “Under a Glass Moon”, o que me pareceu bastante curioso, pois não conhecia muitos guitarristas tão prolíficos. Em 1992 não havia bandas famosas que fizessem músicas épicas, com aproximadamente 10min de duração, inúmeras partes e com alta demonstração de técnica nos instrumentos (depende de definição se se pode considerar Fates Warning uma banda famosa fora da cena do “metal progressivo”, e sabendo-se que o Rush, por outro lado, já tinha popularizado o seu som desde a década de 1980 e estava distante do rock progressivo dos anos 1970). É possível que “Metropolis Pt. 1 (...)”, com seus 9min, tenha mais partes que a íntegra dos discos mais vendidos de grunge da época. E se trata mesmo de uma faixa grandiosa. Detalhá-la seria uma tarefa inútil, então destaco o peso dos versos (com um padrão de palhetadas na 6.ª corda solta, tipo um Metallica com um baterista prog) e a grande parte instrumental que foi nitidamente encaixada entre as partes cantadas. Durante algum tempo, no final dos anos 1990, ouvia (até de pessoas próximas) e lia (em revistas e sites) comentários do tipo que “o Dream Theater só se exibe, puro virtuosismo sem sentimento” e tal, e acredito que essa faixa possa ter contribuído para a divulgação desse pré-conceito. Particularmente, ouvia essa e as demais faixas de “Images and Words” em alto e bom som, e “sentia o sentimento” – como diria um folclórico treinador de futebol. E lembro e admito que numa dessas audições reparei que quem ouvisse a música a partir da parte instrumental acharia uma barulheira infernal (especialmente quando o “snare” de Portnoy é mais acionado). Petrucci confessou que não havia nem ideia nem projeto para uma “Pt. 2” sugerida por essa “Pt. 1”, e que seria apenas uma estratégia da banda ou da gravadora para intrigar os ouvintes. Sei que numa entrevista na época da divulgação do “Falling Into Infinity”, em 1997, o guitarrista falou que para os que achavam que “FII” não era prog o suficiente, que esperassem para ver o que eles estavam aprontando numa faixa que teria o tamanho de “A Change of Seasons” (mais de 20min) e que seria a continuação de “Metropolis Pt. 1 (...)”. Agora se sabe que a banda, de fato, com Sherinian e tudo, compôs e registrou partes do que seria essa “Metropolis Pt. 2”, e que isso evoluiu para (a) a demissão de Sherinian em favor de Jordan Rudess, após o sucesso do projeto paralelo Liquid Tension Experiment, o qual, por sua vez, envolveu Rudess, Portnoy e Petrucci; e (b) a gravação de um disco conceitual inteiro em função de “Metropolis”, o aclamado “Scenes From a Memory”. Não é por acaso, então, que se “Pull Me Under” é a “Smoke on the Water” ou “Paranoid” do Dream Theater, “Metropolis Pt. 1” seria uma espécie de “Highway Star” ou “War Pigs”.
As partes mais legais de “Under a Glass Moon” são os duetos instrumentais, sobretudo as dobras de Petrucci e Portnoy, sendo que o mais legal, mesmo, é a levada de bateria que vai até o início da parte cantada (é uma levada de Portnoy que está sempre na minha cabeça). Quando LaBrie começa a cantar a banda toda (com exceção de Moore, que toca uma melodia climática nos teclados) trabalha num padrão cheio de pausas aparentemente imprevisíveis ou mesmo sem obedecer a um padrão: é o Dream Theater levando a sério e mais longe algumas ideias já promovidas pelo Rush. A interpretação de LaBrie, aqui e também em todo o disco, é muito boa e segura – o cara soltou a voz e estabeleceu o padrão de excelência para os discos do Dream Theater.
Moore compôs uma pequena peça para piano e voz que alterna tempo quebrado e tempo certo (4/4 e 3/4), e que serve de prelúdio para a faixa mais longa do disco, “Learning to Live”, com letra de John Myung. Como não é novidade, a faixa alterna momentos calmos e agressivos, lentos e rápidos, mas não é das minhas favoritas, embora contenha um bom refrão, boas partes instrumentais (antes dos versos há uma levada de baixo e bateria que lembra Chris Squire e Alan White/Bill Bruford) e uns gritos bem agudos e expressivos de LaBrie lá pelas tantas.
Para alguns, “Images and Words” é a representação do virtuosismo a qualquer custo (ou simplesmente um disco chato), mas particularmente entendo que se trata do disco no qual o Dream Theater realmente foi inovador pelo modo como abordou rock progressivo dos anos 1970 e o heavy metal dos anos 1980 e 1990 e inaugurou - ou capitaneou a inauguração de - um novo gênero, o prog metal, sendo um parâmetro de comparação com os futuros lançamentos e mesmo com o material de centenas de bandas que passaram a se dedicar a um som pesado e altamente técnico em relação a todos os instrumentos (e não só guitarras). Tavez por isso tenha o mérito de ser um dos melhores discos de todos os tempos, ou no mínimo um disco essencial. Além disso, “Images and Words” serve para abrir a cabeça de quem é fã de heavy metal para ouvir bandas de rock progressivo – e quem sabe serve também para os fãs de rock progressivo abrirem a cabeça em favor do heavy metal.
Um comentário:
"fiquei bem impressionado com o timbre marcante da bateria".
o IAW é um disco primoroso. bem longe de ser o meu preferido deles, mas é uma obra, mesmo. entretanto, concordo com o fator "skills over feeling" de metropolis. a música em si me irrita demais pelas colagens. mas o que realmente me impede de ouvir esse disco são essas aspas que eu citei acima. não aguento a timbragem geral e a produção do disco, que travestiram um disco de metal progressivo em metal melódico.
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