É curioso como todas as melhores bandas de hard rock e heavy metal (Metallica, Judas Priest, Slayer) lançaram discos excelentes no início dos anos 1990, pouco antes ou concomitantemente com o surgimento do que se convencionou chamar de grunge. O caso do Kiss não foi diferente, pois em 1992 lançou “Revenge”, um belo disco que marcou uma espécie de retorno ao grande som de álbuns como “Creatures of the Night” e “Lick It Up”. Foi o ápice de uma evolução percebida a partir de “Hot in the Shade”: com efeito, após a retirada das máscaras a banda entrou em processo degenerativo de imagem, som e mesmo condução dos destinos da banda. Veja-se que após “Lick It Up” a banda lançou “Animalize”, com bom sucesso, “Asylum”, com mudança de visual já indiciada no disco anterior para participar do “glam metal” ou “hair metal” acompanhada de pasteurização do som, atingindo-se o fundo do poço com “Crazy Nights” e “Smashes, Trashes and Hits” (ainda terei oportunidade para defender que, apesar de tudo, esses discos têm músicas muito boas, mas agora não é o momento). No início dos anos 1990, o Kiss livrou-se dos excessos (roupas multicoloridas e sonoridade convencional) e partiu para composições mais maduras e sólidas em “Hot in the Shade”. Os caras provocaram os fãs no vídeo de “Rise To It”, no qual Gene Simmons e Paul Stanley apareciam num camarim maquiando-se e vestindo-se como se fosse 1975, alimentando esperanças de uma eventual reativação das consagradas máscaras. Além disso, acredito que por volta dessa época todas as bandas de todos os estilos de hard rock e heavy metal passaram a admitir em entrevistas que tiveram o Kiss como grande influência, e que começaram a tocar seus instrumentos e a formar suas bandas por causa do quarteto de New York. Havia, pois, um momento bastante favorável para o Kiss fazer algo relevante e com boa aceitação. Mesmo com o falecimento precoce de Eric Carr em novembro de 1991, a banda já estava no caminho certo para fazer um excelente disco de som pesado.
Lembro de ver o CD nas lojas do Praia de Belas na época em que nem tínhamos CD-Player em casa no início dos anos 1990. E me intrigava a contracapa do CD, com a foto da formação Stanley, Simmons, Kulick e Eric Singer com roupas de couro preto, e o baterista (então, para mim, ignorado) parecia mais um surfista com cabelos compridos loiros (“esse disco deve ser ruim”). O “Alive III”, que ouvi em julho de 1993, serviu para desmistificar esses pré-conceitos, pois essa formação era muito boa e competente para a execução de qualquer música da discografia do Kiss. Então, juntamente com o “Alive III”, adquiri o “Revenge” no segundo semestre de 1993, numa loja da Gal. Chaves, térreo.
Por conhecer o “Alive III”, já estava familiarizado com “Unholy”, “Take It Off”, “I Just Wanna”, “Domino” e “God Gave Rock´n´Roll To You II”. Surpreendeu-me o fato de que as versões de estúdio não eram tão boas quanto às ao vivo: estas soavam mais vivas e dinâmicas, ao contrário daquelas, lentas e um tanto burocráticas. Bob Ezrin foi chamado para ser o produtor, mais de uma década após o último trabalho com a banda (“Music From the Elder”, que apesar da fraca receptividade na época, e da rejeição de Paul em todas as entrevistas, é um disco com músicas muito boas). Independentemente disso, “Revenge” contém os melhores registros da carreira de Bruce Kulick: o guitarrista simplesmente arrebentou em todos os solos e todos os riffs. Não por acaso, Kulick – em entrevista à Guitar World com Angus Young na capa em 1993 – enfatizava o quanto achava legal que Singer era o tipo de baterista que sabia de cor os solos de guitarra a ponto de assobiá-los nos corredores do estúdio. Efetivamente, tratam-se de solos de guitarra marcantes, e agora tenho o interesse renovado para pesquisar a utilização do lendário wah-wah.
“Unholy” não é a música mais pesada do disco, mas é a melhor e mais representativa dessa nova fase do Kiss. É o primeiro single de Gene Simmons desde “I Love It Loud”, e, além do baixista, a autoria é creditada a Vinnie Vincent, o que para mim até hoje não está bem esclarecido (afinal, Vinnie foi demitido duas vezes da banda em 1983 e 1984 conforma amplamente divulgado por Gene e Paul durante todos esses anos, sendo certo que no período houve diversas aços judiciais por parte de VV... por que, então, os caras chamariam um guitarrista tão repudiado para compor novas músicas?). Seja como for, o riff é estupendo (bem sofisticado, começando com slides e partindo para notas na 5.ª e na 4.ª cordas); além disso, toda a parte de guitarra (versos, pré-chorus, chorus, base do solo) é muito bem trabalhada, não havendo nada óbvio ou repetitivo ou fora de lugar. Destaque para o espetacular solo de guitarra de Kulick (talvez só perca em qualidade para o de “Tears Are Falling”, do “Asylum”).
Gosto do fato de que em “Revenge” foram utilizadas outras afinações diferentes da convencional, ou da convencional meio-tom abaixo. Muitas das faixas estão com afinação um tom abaixo, dentre as quais “Take It Off” e o legal é aferir que a afinação mais pesada não traduz, necessariamente, numa música mais pesada. Assim, “Take It Off” é em G, ao invés de A, o que provavelmente serve para facilitar a tarefa de Paul Stanley nos vocais. Trata-se de uma música que funciona muito bem ao vivo, e Paul se aproveita da parada no meio (apenas se ouve a guitarra de Kulick, tocando com os dedos uma parte que lembra a melodia da música) para entreter o público. Novamente, destaco os solos de guitarra. Faço a menor ideia da razão pela qual se atribui nos sites a Kevin Valentine o registro da bateria nessa faixa – de qualquer maneira, não consigo diferenciar a levada nessa música das demais conduzidas por Eric Singer.
A banda já havia gravado “God Gave Rock´n´Roll To You II” para uma trilha-sonora de um filme que já passou várias vezes na Sessão da Tarde, mas que jamais assisti (“Bill & Ted Bogus Journey”). Ainda não sei dizer com certeza essa música foi gravada duas vezes (uma para cada disco), ou apenas se a versão do “Revenge” é uma remixagem da que apareceu na trilha-sonora. Também não sei dizer ao certo se os vocais de apoio de Eric Carr aparecem em “Revenge”. A história, porém, é que Eric Singer gravou a bateria pois Carr estava inapto para tanto, conquanto tenha contribuído com os backing vocals. Eventualmente, Carr reuniu condições para a filmagem do vídeo para a música, que foi o primeiro que vi da banda na MTV e serviu para despertar o interesse sobre o Kiss (que já tinha desde a infância, quando os caras vieram pela primeira vez ao Brasil em 1983). Evidentemente que a música é muito boa: o instrumental é muito bom, e Gene e Paul foram muito competentes na alternância das vozes nos versos.
Paul fez uma letra muito boa para “I Just Wanna”, e o refrão tem parte perfeita para participação do público nos shows. Além disso, há uma parte a capella depois do solo de guitarra que enriquece a composição. Trata-se de uma característica de “Revenge” a diversidade de partes dentro das músicas, e a perfeita execução nos instrumentos (é possível que Bruce Kulick tenha registrado grande parte das guitarras e mesmo do baixo das faixas, fato que é certo em “Carnival of Souls”).
“Domino” é uma das boas composições de Simmons (bons versos e bom refrão), com partes faladas que lembram “Christine Sixteen”. Outra que tem bom solo de Kulick, e é muito bom ouvir a versão demo no “The Box Set”. Além da versão do “Alive III”, os caras mandaram uma versão acústica muito surpreendente para o “MTV Unplugged” (inclusive com solo de Kulick fiel à versão original, o que, convenhamos, é um grande feito em se tratando de violão de cordas de aço sem pedais de distorção).
“Every Time I Look At You” é a balada de Paul, e é uma das melhores da banda, e que teria feito muito sucesso nas rádios, caso o Kiss tivesse espaço na época (que não era mais favorável ao rock farofa). Até hoje tenho dificuldade para encontrar um jeito de tocar adequadamente a magnífica introdução, e acho muito bons os acordes dos versos. Os caras fizeram bem ao incluí-la no “MTV Unplugged”, mesmo em prejuízo de “Forever”, que seria a escolha mais óbvia.
“Revenge” tem um punhado de boas e obscuras composições: na verdade, não há música fraca nesse disco. Nessas condições têm-se “Tough Love”, “Heart of Chrome”, “Thou Shalt Not”, “Paralyzed”, “Spit” e, principalmente, “Carr Jam 1981”. Vejamos. As duas primeiras são de Paul (com coautores), contam com afinação mais pesada (um tom abaixo, acredito), várias partes legais de guitarra, e backing vocals marcantes e afinados. No solo de guitarra de “Tough Love”, Kulick utiliza bastante o wah-wah com alavancadas da mesma forma que veio a desenvolver com mais intensidade em “Carnival of Souls” (1996). “Heart of Chrome” é talvez a faixa com as mais complexas partes de guitarra, além de ter um refrão marcante com vocais sobrepostos. “Thou Shalt Not” é possivelmente a faixa mais pesada do disco (devido ao riff inicial que aparece no refrão), tem letra pessoal muito boa de Gene (sobretudo pelas rimas nos versos) e é mais uma com solo competente com wah-wah de Kulick. “Paralyzed” não é tão marcante, ainda mais por aparecer quase no final de um disco tão bom. “Spit” tem partes excepcionais de guitarra, com várias notas e pausas, e a letra é cantada ao estilo “rap”, digamos assim. No solo de gutiarra, Kulick executa as primeiras notas do “Star Spangled Banner”. Os caras tocavam essa em formato acústico nas convenções, e é uma pena que não aproveitaram para registrá-la no “Unplugged MTV” (no lugar de, por exemplo, “Domino” – no volume 3 do Kissology aparece os caras tocando “Spit” – até o solo de guitarra, quando Kulick pára e dá risada - enquanto o pessoal da MTV providenciava as alterações no cenário para acomodar Ace Frehley e Peter Criss no palco – e os presentes cantam junto).
Indiscutivelmente é um grande disco do Kiss, com as melhores guitarras já registradas pela banda, e os méritos são todos de Bruce Kulick, sem prejuízo da participação excelente de Eric Singer. Acredito que seja algum problema de produção ou mixagem, pois o som das músicas é um pouco travado em comparação com as versões ao vivo; admito, no entanto, que essa é uma característica de todos os discos do Kiss (à exceção de “Animalize”, “Asylum”, “Crazy Nights”, “Carnival of Souls” e, mais recentemente, “Sonic Boom”).
Nenhum comentário:
Postar um comentário