Após os vários desdobramentos da turnê de “Revenge” e “Alive III”, o Kiss retornou aos estúdios para gravar um novo disco com material inédito; lembro de ler entrevistas de Gene Simmons para a Guitar World (quando não comprava, lia na antiga Siciliano do Praia de Belas) que algumas músicas já estavam prontas, dentre as quais “Carnival of Souls”. A expectativa de lançamento era para 1995/início de 1996, mas as negociações para o “MTV Unplugged” e finalmente a volta da formação original fizeram com que Gene e Paul Stanley optassem por engavetar o disco que veio a ser “Carnival of Souls”. É intuitivo, no entanto, que os fãs de Kiss fossem atrás de bootlegs com versões demo ou remixadas das músicas desse album; assim, em 1997, sem divulgação alguma que não uma ou outra entrevista coletiva, é que foi lançado “Carnival of Souls: The Final Sessions”. Lembro-me que Eric Singer se recusou a participar desse lançamento tardio, pois ficara revoltado com o retorno da formação original, e por ter sido colocada “de molho” a formação então atual; o baterista chegou a expressar que jamais tocaria novamente com Gene e Paul, e ironicamente não demorou para o cara ser o único a retornar (é o baterista até hoje, após Gene e Paul desistirem acertadamente de Peter Criss).
Em entrevista à melhor revista de guitarra do mundo, a Guitar World, Paul Stanley admite que “Carnival of Souls” é um disco equivocado, pois apesar de não ser ruim, é uma tentativa fracassada da banda tentar se mostrar antenada com o som do momento. Esse tipo de comentário é estranho de ouvir de Paul, sobretudo se considerarmos que o Kiss aderiu à onda da disco music em 1979/1980 (“I Was Made For Lovin´ You” foi composta exatamente para mostrar que Paul podia escrever músicas disco), e ainda perfilou junto com outras tantas bandas de hair metal nos anos 1980, sem contar o “The Elder”, que representou a tentativa da banda de ter o seu “The Wall” com o mesmo produtor Bob Ezrin. Em todo o caso, “Carnival of Souls” é um excelente disco do Soundgarden ou do Alice in Chains (particularmente, entendo que é um disco melhor do que os lançados por essas bandas que fizeram excepcional sucesso na primeira metade dos anos 1990). Conheço “Carnival of Souls” desde o seu lançamento, e assim foi só recentemente, quando ouvi “Superunknown” e “Badmotorfinger” que entendo o que o Kiss estava tentando fazer. Repito: acho que “Carnival of Souls” é um disco melhor, com melhores músicas e riffs, do que os citados da banda de Chris Cornell.
Li recentemente uma longa entrevista do Eric Singer para o Kiss FAQ, e sobre "Carnival of Souls" o cara concordou com a noção de que se trata de um bom disco, mas não de um bom disco do Kiss. Fato é que o baterista trouxe uma perspectiva interessante quando se queixou da mixagem de responsabilidade de Toby Wright. O raciocínio é de que se o disco é pesado, então a mixagem deve tornar as coisas estupidamente pesadas, e aí o disco seria grandioso e se colocaria bem entre (ou ao lado de) "Revenge", "Creatures of the Night" e "Lick It Up". Diz o baterista que o som das faixas básicas era monstruoso de bom. Ocorre que o produtor resolveu adotar uma mixagem alternativa, experimentando de certa forma, e aí o resultado final ficou a desejar. E é bem possível que Eric Singer esteja certo, pois, apesar de não ter nenhum conhecimento nessa área, sempre me pareceu que o som do disco tinha algo de diferente, e digo diferente de maneira desconfortável.
Na época, pareceu-me natural que a banda investisse em um som pesado, face ao sucesso com o qual foi recebido “Revenge” e o “Alive III”. Mas o peso não se restringiu aos riffs e à estrutura das composições: a afinação de quase todas as faixas é meio abaixo (Eb-Ab-Db-Gb-Bb-Eb) com a sexta corda um tom abaixo (Db). Sabe-se que a afinação dropped-D favorece riffs bem pesados, do tipo que o Soundgarden costumava empregar em algumas de suas composições. O Kiss utilizou-se bastante das facilidades dessa afinação para construir riffs monumentais como é o caso de “Hate”, “In My Head”, “Jungle”, dentre outras.
Acredito que Paul Stanley tenha deixado Bruce Kulick gravar quase a totalidade das guitarras, e que Gene Simmons tenha atribuído a Kulick a tarefa de registrar grande parte das linhas de baixo, especialmente das composições de Paul. Afinal, não deve ser por acaso que Kulick é coautor de quase todas as faixas de “Carnival of Souls”, sendo que o precedente mais próximo nesse sentido é “Lick It Up”, no qual Vinnie Vincent foi coautor de quase todas as faixas (apenas duas foram composições exclusivas de Gene). Entendo que Kulick fez um excepcional trabalho.
“Carnival of Souls” é um belo disco, mas admito que a sua audição pode não ser das mais pacíficas no início. Afinal, não é um disco regular do Kiss. A afinação é mais pesada, o clima das faixas é mais sombrio, e até os solos de guitarra são menos marcantes do que estamos acostumados com Ace Frehley, Vinnie Vincent e o próprio Kulick. Aqui, vê-se extensa utilização de barulhos e notas inusitadas mediante alavancadas (dá-lhe Floyd Rose), muita distorção e efeitos de pedal wah-wah. Os solos de guitarra, portanto, não são convencionais: o solo começa, e eu fico esperando que uma hora vai começar a debulhação de notas, mas aí após alguns bends, alavancadas e outros recursos guitarrísticos que não identifico, o solo encerra e a música volta para um pre-chorus, chorus ou outro verso. Confesso que é um pouco desconcertante ouvir músicas do Kiss desse jeito, mas agora estou apreciando bastante, sobretudo em pesquisas sobre a utilização de wah-wah (Kulick é um dos expoentes em termos de guitarristas pouco apreciados e que mereciam maior exposição – os chamados “underrated”).
Se “Revenge” começava com uma composição de Gene (“Unholy”), natural que “Carnival of Souls” inaugurasse com outra do baixista: “Hate” é típica, e provavelmente é a melhor do disco. O riff é matador, todo na 6.ª corda, mas a escolha das notas é primorosa. Sabendo-se as notas e fazendo-se os hammer-ons e pull-offs corretamente, o riff é muito bom de tocar.
Gene conseguiu compor um baita refrão para “Childhood´s End”, com auxílio de Kulick e de Tommy Thayer. A faixa tem os versos com guitarra limpa executando acordes e me parece que o baixo é do tipo fretless, ou pelo menos o timbre é bem parecido. Foi empregado um coro de crianças para cantar o refrão ao final da música, e isso é indicação de que o projeto era levado bem a sério durante sua execução.
Gosto muito de “In My Head”, que é uma paulada na cabeça de Gene, com uns andamentos quebrados e levadas cortantes de Eric Singer. Os vocais são muito bons. Bela música de heavy metal.
Há melodias em “Seduction of the Innocent” e em “I Confess”, que não são músicas tão pesadas. Assim, percebe-se que das faixas de Gene, apenas duas são bem pesadas – as demais têm tom grave, mas as melodias prevalecem.
“Rain”, de Paul, é basicamente sobre um andamento 7/8 com efeito cortante no final do compasso. “Master & Slave” conta com o melhor riff do disco, muito bem construído sobretudo na virada final antes da repetição. Essas duas músicas são cantadas por Paul de um jeito bem diferente do qual estamos acostumados, com vocal mais baixo. “Jungle” também tem um belo riff e “I Will Be There” é a única balada do álbum, executada em violões afinados bem grave e um baixo fretless. Nesta os vocais são graves no início, e depois Paul solta a voz. O solo de violão de Kulick é preciso como de costume – o cara estava em excelente fase. “It Never Goes Away” e “In the Mirror” (ambas compostas por Stanley, Kulick e Curtis Cuomo, assim como o fora com “Jungle”, “Rain”, “Master & Slave”, “I Will Be There”) são menos marcantes.
Quanto nem esperava o lançamento em mercado nacional, encontrei o disco nas Americanas do Centro por um preço bem tranquilo em meados de 1997 (essa cadeia de lojas é cíclica em termos de disponibilizar CDs bons por preços baixos – nos últimos tempos está ruim de negócio, mas acredito que daqui a alguns meses voltará a valer a pena a visita).
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